1. Introdução
O
presente ensaio tem por finalidade fazer uma contextualização do livro República Guarani, de Clovis Lugon. Padre
suíço que se dedicou a estudar as reduções jesuíticas na América. O primeiro
nome de seu livro intitulou-se “República Comunista Cristã dos Guaranis e
relata como foram montadas as reduções Guaraníticas em meados do século XVII. É
falado sobre o papel dos Jesuítas e os desafios encontrados até se chegar a uma
sociedade que se manteve por séculos, sempre se consolidando, que sedimentou
uma identidade dentro dos preceitos do coletivo, cooperativismo, trabalho, igualdade
e fraternidade, embasados nos princípios da educação e da fé cristã.
O
segundo ponto deste ensaio sustenta-se em apresentar, de acordo com os relatos
de descrições contidos no livro de Lugon (2010),
o modo de vida dos povos Guaranis. Apresenta-se um padrão de gestão social,
visto que esse sistema se define por uma visão inovadora e criativa que leva a
resultados em uma esfera social mais produtiva.
Por
fim, apresentam-se as considerações finais sobre o livro, buscando um
entendimento sobre o modo de vida nas reduções, suas implicações e desfecho em
um contexto social, político e econômico.
2. República
Guarani
2.1 Os
Guaranis
Segundo o livro República Guarani, de Clovis Lugon
(2010), a etnia Guarani existia além das terras do Paraguai, em grande parte da
América do Sul, entre o Equador e o rio do Prata, em quase todo o Brasil e
também em parte da Argentina, de Corrientes a Entre-Rios.
Lugon (2010), no
primeiro capítulo de seu livro: Os
Guaranis antes da chegada dos Jesuítas, relata que o Paraguai é a pátria
dos Guaranis, mas a maior parte da República Guarani situava-se fora do
território Paraguaio.
De acordo com um artigo
publicado em 2008 no site da FUNAI
(Fundação Nacional do Índio), os povos Guaranis são muito semelhantes em
questões relacionadas
com a cultura, crenças e organizações
sociopolíticas, porém apresentam distinções relação à linguagem, religiões e
aplicações de diversas tecnologias. Tais diferenças, como relata o artigo, são
consideradas pequenas, mas são marcadores para a percepção de que esses grupos
reconhecem a origem e proximidade entre si, diferenciando-se nas formas de
manter suas organizações sociopolíticas e econômicas.
Charlevoix (1756), citado por Clóvis Lugon (2010), descreve que os Guaranis possuíam
temperamento sociável, com condições de conviverem melhor em harmonia e em
sociedade que os povos europeus. Tinham uma vida seminômade, viviam da caça e
da pesca e a agricultura era escassa, sem muitos recursos. A vida íntima e
social também era tida como precária, pois eles se amontoavam em galpões
rústicos, onde a promiscuidade e a poligamia eram visíveis. Com relação à
religiosidade, eles acreditavam em apenas um deus, mas não faziam nenhum culto
ou sacrifícios a ele.
2.2
Chegada dos Jesuítas e as Reduções
De
acordo com os estudos de Britto (2008), a Companhia de Jesus chegou às terras
brasílicas por volta de 1549, acompanhada do governador-geral Tomé de Souza. Nos
estudos de Lugon (2010), os missionários adentraram nas terras Guaraníticas em
1586 a convite de François de Vittoria, primeiro bispo de Tucumã, e no ano
seguinte entraram no Paraguai.
Os
padres Jesuítas começaram seus trabalhos com o intuito de catequizar os índios
e transformá-los em uma nova organização social e de trabalho.
Nesse
sentido, formaram-se as reduções. Foucault (1979, p. 117-142) define as
reduções como:
[...] instrumentos
da socialização católica estabelecida pela Companhia de Jesus, fundada em 1534
por Inácio de Loyola (1491-1556) e que teve uma intensa atividade catequética
nos trópicos. Por meio destes instrumentos, os jesuítas tutelavam, vigiavam e
também puniam os ameríndios que não se adequavam às regras de convivência
social instauradas pela moral tridentina (Concílio de Trento: 1545-1563). As
construções jesuíticas eram habitadas pelas populações indígenas que estavam
submetidas ao poder disciplinar exercido pelos religiosos.
Conforme Lugon (2010),
as reduções iniciais foram formadas por 200 famílias batizadas alguns anos antes
pelos padres Ortega e Fields. Assim, começa-se a instaurar a vida social, e o
aumento da população passa a ser expressivo.
As reduções eram como
cidades, com todo um planejamento arquitetônico e muito bem organizado, com estruturas
e localizações bastante estratégicas. Eram compostas pelas seguintes
construções: igreja, praça, escola, casa das viúvas, asilo, hospital,
alojamento para solteiros, cemitérios e casas para os Guaranis que contraíam
matrimônio.
Com relação ao tamanho
das populações nas reduções, Clóvis Lugon (2010) informa que foi relatado em
cartas para a Europa que a quantidade de recém-admitidos nas reduções variava
entre 5 mil e 20 mil. Porém, o padre procurador Juan Pastor reportou cerca de
200 mil recém-admitidos em 24 reduções, e no ano de 1647 o número das reduções
teria aumentado para 27, com cerca de 300 mil neófitos.
As reduções sofreram
muitos embates durante o longo período de suas criações e instalações,
principalmente pelos paulistas ou mamelucos. Lugon (2010) descreve os paulistas
ou mamelucos como portugueses, chefes de expedições de caçadores de negros e
índios que forneciam os degredados nos portos do Brasil. Aparentemente, eles
eram pessoas de boa conduta moral e cristã.
2.3
A organização da vida cotidiana na
República Guarani
Os Guaranis deixaram a
vida seminômade e começaram a aprender novos modos de produção e cultivo da
terra. A agricultura e a pecuária tomaram novos rumos. Além da cultura da
mandioca e do mate, foram incluídos os hortifrútis (frutos), especiarias
(cravo, alecrim etc.) e hortaliças (chicórias). Nas lavouras, tiveram espaço o
trigo, milho, aveia, arroz e algodão. Esse povo apresentou o modelo agrícola
mais organizado das Américas.
Com relação à indústria
e ao artesanato, estes tiveram de ser introduzidos na cultura das reduções Guaraníticas.
Devido à facilidade de aprendizagem e à boa vontade pelo trabalho, a fabricação
de peças e artefatos obteve bom progresso. O espírito de cooperação mútua
também os motivou a desenvolver o trabalho. As crianças, desde pequenas, eram
iniciadas ao aprendizado nas questões manufatureiras e na arte de ofícios.
Conforme os relatos de
Lugon (2010, p. 103) sobre as artes, pode-se entender que: “[...] Desde a
primeira abordagem, os Guaranis se mostraram muito sensíveis e abertos a todos
os tipos de arte. Eram dotados para a escultura, para a pintura e
principalmente para a música”.
Quando as reduções
foram saqueadas e os soldados tiveram contato com as artes, principalmente
sacras, confeccionadas pelos Guaranis, eles ficaram estupefatos. Até a confusão
psíquica do pecado por tamanha destruição veio à tona.
Na República Guarani,
desconhecia-se o dinheiro. Não existia a profissão de comerciante; as
necessidades individuais eram supridas pelo centro de distribuição coletiva, e
as famílias tinham o que era suficiente para sua subsistência.
Com relação ao regime
de propriedade, nos estudos de Lugon (2010), ele descreve que alguns autores
burgueses negam que o regime comunista fora praticado. Hernández
(1913 apud LUGON, 2010 p. 227) afirma:
“Não havia comunismo nas reduções, no tempo dos jesuítas. Somente alguns bens
comuns, produzidos pelo trabalho coletivo, serviam para socorrer indigentes e
pagar tributos”.
No que compete ao
trabalho e sua dinâmica, o tempo era de oito horas por dia ou uma carga média
de seis horas. As mulheres atuavam nas tarefas domésticas e as meninas aprendiam
a fiar, costurar e cozinhar. Quando as crianças não estavam na escola, elas iam
para as lavouras afugentar as aves, e os meninos aprendiam ofícios e tinham
aulas práticas de agricultura. Todos tinham iguais condições de trabalho e de
vida e não obtinham salários, mas tinham na velhice, na doença e na viuvez seus
benefícios garantidos.
A vida social, como
relata Lugon (2010), era coesa e harmônica, em um contexto de paz e união.
Fazia parte desse contexto a música, dança e teatro.
Por fim, a vida
religiosa pode ser definida como a prática instalada no conceito do amor
fraterno, da cooperação, da coletividade e da distribuição dos bens. A vida
religiosa nas reduções não tinha apenas um caráter litúrgico, mas também da
prática e da comunhão com o próximo.
3. Gestão
Social
De acordo com Cançado,
Tenório e Pereira (2011) ,
gestão social se define como a tomada de decisão coletiva, baseada da
inteligibilidade da linguagem, na dialogicidade e no entendimento esclarecido
como processo, na transparência como pressuposto e na emancipação enquanto fim
último.
Nos estudos de Cançado e Cols
(2011) ,
contidos no Dicionário para a Formação de
Gestão Social, os pesquisadores citam os estudos de Tocqueville (1987)
sobre Interesse Bem Compreendido (IBC), que tem como definição a premissa de
que o bem-estar coletivo é pré-condição para o bem-estar individual. Então, ao
defender os interesses coletivos, em última instância, o indivíduo está
defendendo seus próprios interesses, em uma relação de interdependência.
Em síntese, a gestão
social visa ao bem-estar comum no intuito da promoção de mudanças sociais para
o crescimento, havendo a necessidade dos atores sociais e de que estes sejam
protagonistas da sua própria história. O objetivo é a transformação individual
e coletiva de forma harmônica, em equilíbrio e com uma comunicação que leve a
uma produção e resultado final significativos.
3.
Sobre
a República Guarani e Gestão Social
Esse
fato histórico e épico é narrado de forma clara e de fácil entendimento por
Clóvis Lugon (2010), dando-nos uma transparência específica do que foi, na
época das reduções indígenas, a formação político-administrativa, econômica e
cristã.
Pode-se
perceber claramente o processo de gestão sendo implantado nas reduções até a
chegada de resultados e do produto final, que seria a completa distribuição de
bens e serviços e que todos partilhassem de um crescimento e de uma
transformação social. Como descreve a gestão social de Cançado e Cols (2011), podemos
perceber a tomada de decisão coletiva sem coerção nas reduções quando os
conselheiros tinham de punir crimes ou transgressões cometidas. Na distribuição
dos modos de subsistência entre as famílias, havia a transparência nas tomadas
de decisões entre os padres e os conselheiros indígenas, mantida por um diálogo
na busca de entendimento. Por fim, pode-se caracterizar o progresso das
reduções como o romper barreiras para a emancipação, fato que permitiu que as
reduções sobrevivessem por séculos. A inteligibilidade esteve presente em todo o
processo, e nesse sentido podemos exemplificar a disparidade entre dois povos
distintos: europeus e indígenas.
Com
isso, a premissa de Tocqueville (1987 apud
CANÇADO, 2011), o IBC, funda-se no bem estar coletivo e reflete-se na
República Guarani, pois as reduções buscaram seus interesses coletivos em uma
relação de interdependência e colaboração mútua.
4.
Considerações
sobre o livro República Guarani
Clóvis
Lugon (2010) relata de uma forma lírica a saga dos Guaranis e jesuítas em busca
de condições de vida mais sustentáveis. Ao ler o livro, percebe-se que entre
lutas, derrotas e vitórias, há um momento de harmonia, prosperidade e paz, como
se fosse um paraíso.
O
processo de desconstrução de uma cultura primitiva para uma cultura dentro de
padrões sociais formais ditados por um modelo europeu e doutrinação de uma
religiosidade de muitos ritos e costumes bastante distintos não foi uma tarefa
muito fácil. Entretanto, como o próprio Lugon (2010) descreve essa trajetória,
percebe-se que é através da “democratização” que os interesses de um grupo
coletivo começam a ser implantados. Os resultados significativos são percebidos
pela própria comunidade e as bases começam a se fortalecer.
Seria
delicada a afirmação de que a República Guarani seria uma sociedade comunista,
mas, de acordo com os relatos obtidos, percebe-se uma sociedade sob o domínio
de uma doutrina religiosa, com todos os seus dogmas da época. Neste sentido podemos
inferenciar uma sociedade socialista cristã e um grupo de indivíduos em busca
de uma organização social política e econômica mais humanitária e igualitária.
A
República dos Guaranis foi uma tentativa e um vislumbre de uma sociedade mais
justa, dentro dos preceitos da liberdade, igualdade e fraternidade, nos moldes
de um ideário cristão.
REFERÊNCIAS
BRITTO,
Rossana. República Guarani no Espelho. UFES.
Disponível em: <http://www.academia.edu/3809363/Rep%C3%BAblica_Guarani_no_espelho>. Acesso em 11/11/2016.
CANÇADO,
Airton Cardoso. Gestão Social. In:
Buoullosa, Rosana de Freitas (org.). Dicionário para a formação em gestão
social, Salvador: CIAGS/UFBA, 2014. P.80-84.
CANÇADO,
A.C., TENÓRIO F.G.; PEREIRA, J.R. Gestão
Social. Reflexões teóricas e conceituais. Cadernos EBAPE.BR,v.9,n.3,p.681-703,
2011.
CECHIN, ANTÔNIO.
A República Guarani de Clovis Lugon. http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=3281&secao=332 acessado
em 04/12/2016.
FOUCAULT,
Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
FUNAI
– Fundação Nacional do Índio. História e
Cultura Guarani. Ministério da Justiça. Disponível em: <http://www.funai.gov.br/index.php/ascom/1947-historia-e-cultura-guarani>.
Acesso em 27/11/2016.
LUGON,
Clóvis. A República Guarani. Trad.
Alcy Cheuyche, ed. 1. Ed. 248p. Expressão Popular, São Paulo, 2010.
FILME INDICADO: A MISSÃO
SINOPSE
No final do século XVIII Mendoza (Robert De Niro), um
mercador de escravos, fica com crise de consciência por ter matado Felipe
(Aidan Quinn), seu irmão, num duelo, pois Felipe se envolveu com Carlotta
(Cherie Lunghi). Ela havia se apaixonado por Felipe e Mendoza não aceitou isto,
pois ela tinha um relacionamento com ele. Para tentar se penitenciar Mendoza se
torna um padre e se une a Gabriel (Jeremy Irons), um jesuíta bem intencionado
que luta para defender os índios, mas se depara com interesses econômicos.