terça-feira, 14 de novembro de 2017

Ensaio: República Guarani Sob a Ótica da Gestão Social

         


1.      Introdução

O presente ensaio tem por finalidade fazer uma contextualização do livro República Guarani, de Clovis Lugon. Padre suíço que se dedicou a estudar as reduções jesuíticas na América. O primeiro nome de seu livro intitulou-se “República Comunista Cristã dos Guaranis e relata como foram montadas as reduções Guaraníticas em meados do século XVII. É falado sobre o papel dos Jesuítas e os desafios encontrados até se chegar a uma sociedade que se manteve por séculos, sempre se consolidando, que sedimentou uma identidade dentro dos preceitos do coletivo, cooperativismo, trabalho, igualdade e fraternidade, embasados nos princípios da educação e da fé cristã.
O segundo ponto deste ensaio sustenta-se em apresentar, de acordo com os relatos de descrições contidos no livro de Lugon (2010), o modo de vida dos povos Guaranis. Apresenta-se um padrão de gestão social, visto que esse sistema se define por uma visão inovadora e criativa que leva a resultados em uma esfera social mais produtiva.
Por fim, apresentam-se as considerações finais sobre o livro, buscando um entendimento sobre o modo de vida nas reduções, suas implicações e desfecho em um contexto social, político e econômico.

2.             República Guarani

2.1       Os Guaranis

Segundo o livro República Guarani, de Clovis Lugon (2010), a etnia Guarani existia além das terras do Paraguai, em grande parte da América do Sul, entre o Equador e o rio do Prata, em quase todo o Brasil e também em parte da Argentina, de Corrientes a Entre-Rios.
Lugon (2010), no primeiro capítulo de seu livro: Os Guaranis antes da chegada dos Jesuítas, relata que o Paraguai é a pátria dos Guaranis, mas a maior parte da República Guarani situava-se fora do território Paraguaio.
De acordo com um artigo publicado em 2008 no site da FUNAI (Fundação Nacional do Índio), os povos Guaranis são muito semelhantes em questões relacionadas
com a cultura, crenças e organizações sociopolíticas, porém apresentam distinções relação à linguagem, religiões e aplicações de diversas tecnologias. Tais diferenças, como relata o artigo, são consideradas pequenas, mas são marcadores para a percepção de que esses grupos reconhecem a origem e proximidade entre si, diferenciando-se nas formas de manter suas organizações sociopolíticas e econômicas.
Charlevoix (1756), citado por Clóvis Lugon (2010), descreve que os Guaranis possuíam temperamento sociável, com condições de conviverem melhor em harmonia e em sociedade que os povos europeus. Tinham uma vida seminômade, viviam da caça e da pesca e a agricultura era escassa, sem muitos recursos. A vida íntima e social também era tida como precária, pois eles se amontoavam em galpões rústicos, onde a promiscuidade e a poligamia eram visíveis. Com relação à religiosidade, eles acreditavam em apenas um deus, mas não faziam nenhum culto ou sacrifícios a ele.

2.2              Chegada dos Jesuítas e as Reduções

De acordo com os estudos de Britto (2008), a Companhia de Jesus chegou às terras brasílicas por volta de 1549, acompanhada do governador-geral Tomé de Souza. Nos estudos de Lugon (2010), os missionários adentraram nas terras Guaraníticas em 1586 a convite de François de Vittoria, primeiro bispo de Tucumã, e no ano seguinte entraram no Paraguai.
Os padres Jesuítas começaram seus trabalhos com o intuito de catequizar os índios e transformá-los em uma nova organização social e de trabalho.
Nesse sentido, formaram-se as reduções. Foucault (1979, p. 117-142) define as reduções como:

[...] instrumentos da socialização católica estabelecida pela Companhia de Jesus, fundada em 1534 por Inácio de Loyola (1491-1556) e que teve uma intensa atividade catequética nos trópicos. Por meio destes instrumentos, os jesuítas tutelavam, vigiavam e também puniam os ameríndios que não se adequavam às regras de convivência social instauradas pela moral tridentina (Concílio de Trento: 1545-1563). As construções jesuíticas eram habitadas pelas populações indígenas que estavam submetidas ao poder disciplinar exercido pelos religiosos.

Conforme Lugon (2010), as reduções iniciais foram formadas por 200 famílias batizadas alguns anos antes pelos padres Ortega e Fields. Assim, começa-se a instaurar a vida social, e o aumento da população passa a ser expressivo.
As reduções eram como cidades, com todo um planejamento arquitetônico e muito bem organizado, com estruturas e localizações bastante estratégicas. Eram compostas pelas seguintes construções: igreja, praça, escola, casa das viúvas, asilo, hospital, alojamento para solteiros, cemitérios e casas para os Guaranis que contraíam matrimônio.
Com relação ao tamanho das populações nas reduções, Clóvis Lugon (2010) informa que foi relatado em cartas para a Europa que a quantidade de recém-admitidos nas reduções variava entre 5 mil e 20 mil. Porém, o padre procurador Juan Pastor reportou cerca de 200 mil recém-admitidos em 24 reduções, e no ano de 1647 o número das reduções teria aumentado para 27, com cerca de 300 mil neófitos. 
As reduções sofreram muitos embates durante o longo período de suas criações e instalações, principalmente pelos paulistas ou mamelucos. Lugon (2010) descreve os paulistas ou mamelucos como portugueses, chefes de expedições de caçadores de negros e índios que forneciam os degredados nos portos do Brasil. Aparentemente, eles eram pessoas de boa conduta moral e cristã.

2.3              A organização da vida cotidiana na República Guarani

Os Guaranis deixaram a vida seminômade e começaram a aprender novos modos de produção e cultivo da terra. A agricultura e a pecuária tomaram novos rumos. Além da cultura da mandioca e do mate, foram incluídos os hortifrútis (frutos), especiarias (cravo, alecrim etc.) e hortaliças (chicórias). Nas lavouras, tiveram espaço o trigo, milho, aveia, arroz e algodão. Esse povo apresentou o modelo agrícola mais organizado das Américas.
Com relação à indústria e ao artesanato, estes tiveram de ser introduzidos na cultura das reduções Guaraníticas. Devido à facilidade de aprendizagem e à boa vontade pelo trabalho, a fabricação de peças e artefatos obteve bom progresso. O espírito de cooperação mútua também os motivou a desenvolver o trabalho. As crianças, desde pequenas, eram iniciadas ao aprendizado nas questões manufatureiras e na arte de ofícios.
Conforme os relatos de Lugon (2010, p. 103) sobre as artes, pode-se entender que: “[...] Desde a primeira abordagem, os Guaranis se mostraram muito sensíveis e abertos a todos os tipos de arte. Eram dotados para a escultura, para a pintura e principalmente para a música”.
Quando as reduções foram saqueadas e os soldados tiveram contato com as artes, principalmente sacras, confeccionadas pelos Guaranis, eles ficaram estupefatos. Até a confusão psíquica do pecado por tamanha destruição veio à tona.
Na República Guarani, desconhecia-se o dinheiro. Não existia a profissão de comerciante; as necessidades individuais eram supridas pelo centro de distribuição coletiva, e as famílias tinham o que era suficiente para sua subsistência.
Com relação ao regime de propriedade, nos estudos de Lugon (2010), ele descreve que alguns autores burgueses negam que o regime comunista fora praticado. Hernández  (1913 apud LUGON, 2010 p. 227) afirma: “Não havia comunismo nas reduções, no tempo dos jesuítas. Somente alguns bens comuns, produzidos pelo trabalho coletivo, serviam para socorrer indigentes e pagar tributos”.
No que compete ao trabalho e sua dinâmica, o tempo era de oito horas por dia ou uma carga média de seis horas. As mulheres atuavam nas tarefas domésticas e as meninas aprendiam a fiar, costurar e cozinhar. Quando as crianças não estavam na escola, elas iam para as lavouras afugentar as aves, e os meninos aprendiam ofícios e tinham aulas práticas de agricultura. Todos tinham iguais condições de trabalho e de vida e não obtinham salários, mas tinham na velhice, na doença e na viuvez seus benefícios garantidos.
A vida social, como relata Lugon (2010), era coesa e harmônica, em um contexto de paz e união. Fazia parte desse contexto a música, dança e teatro.
Por fim, a vida religiosa pode ser definida como a prática instalada no conceito do amor fraterno, da cooperação, da coletividade e da distribuição dos bens. A vida religiosa nas reduções não tinha apenas um caráter litúrgico, mas também da prática e da comunhão com o próximo.

3.                  Gestão Social
De acordo com Cançado, Tenório e Pereira (2011) , gestão social se define como a tomada de decisão coletiva, baseada da inteligibilidade da linguagem, na dialogicidade e no entendimento esclarecido como processo, na transparência como pressuposto e na emancipação enquanto fim último.
Nos estudos de Cançado e Cols (2011) , contidos no Dicionário para a Formação de Gestão Social, os pesquisadores citam os estudos de Tocqueville (1987) sobre Interesse Bem Compreendido (IBC), que tem como definição a premissa de que o bem-estar coletivo é pré-condição para o bem-estar individual. Então, ao defender os interesses coletivos, em última instância, o indivíduo está defendendo seus próprios interesses, em uma relação de interdependência.
Em síntese, a gestão social visa ao bem-estar comum no intuito da promoção de mudanças sociais para o crescimento, havendo a necessidade dos atores sociais e de que estes sejam protagonistas da sua própria história. O objetivo é a transformação individual e coletiva de forma harmônica, em equilíbrio e com uma comunicação que leve a uma produção e resultado final significativos.

3.                  Sobre a República Guarani e Gestão Social

Esse fato histórico e épico é narrado de forma clara e de fácil entendimento por Clóvis Lugon (2010), dando-nos uma transparência específica do que foi, na época das reduções indígenas, a formação político-administrativa, econômica e cristã.
Pode-se perceber claramente o processo de gestão sendo implantado nas reduções até a chegada de resultados e do produto final, que seria a completa distribuição de bens e serviços e que todos partilhassem de um crescimento e de uma transformação social. Como descreve a gestão social de Cançado e Cols (2011), podemos perceber a tomada de decisão coletiva sem coerção nas reduções quando os conselheiros tinham de punir crimes ou transgressões cometidas. Na distribuição dos modos de subsistência entre as famílias, havia a transparência nas tomadas de decisões entre os padres e os conselheiros indígenas, mantida por um diálogo na busca de entendimento. Por fim, pode-se caracterizar o progresso das reduções como o romper barreiras para a emancipação, fato que permitiu que as reduções sobrevivessem por séculos. A inteligibilidade esteve presente em todo o processo, e nesse sentido podemos exemplificar a disparidade entre dois povos distintos: europeus e indígenas.
Com isso, a premissa de Tocqueville (1987 apud CANÇADO, 2011), o IBC, funda-se no bem estar coletivo e reflete-se na República Guarani, pois as reduções buscaram seus interesses coletivos em uma relação de interdependência e colaboração mútua.

4.                  Considerações sobre o livro República Guarani

Clóvis Lugon (2010) relata de uma forma lírica a saga dos Guaranis e jesuítas em busca de condições de vida mais sustentáveis. Ao ler o livro, percebe-se que entre lutas, derrotas e vitórias, há um momento de harmonia, prosperidade e paz, como se fosse um paraíso.
O processo de desconstrução de uma cultura primitiva para uma cultura dentro de padrões sociais formais ditados por um modelo europeu e doutrinação de uma religiosidade de muitos ritos e costumes bastante distintos não foi uma tarefa muito fácil. Entretanto, como o próprio Lugon (2010) descreve essa trajetória, percebe-se que é através da “democratização” que os interesses de um grupo coletivo começam a ser implantados. Os resultados significativos são percebidos pela própria comunidade e as bases começam a se fortalecer.
Seria delicada a afirmação de que a República Guarani seria uma sociedade comunista, mas, de acordo com os relatos obtidos, percebe-se uma sociedade sob o domínio de uma doutrina religiosa, com todos os seus dogmas da época. Neste sentido podemos inferenciar uma sociedade socialista cristã e um grupo de indivíduos em busca de uma organização social política e econômica mais humanitária e igualitária.
A República dos Guaranis foi uma tentativa e um vislumbre de uma sociedade mais justa, dentro dos preceitos da liberdade, igualdade e fraternidade, nos moldes de um ideário cristão.


REFERÊNCIAS

BRITTO, Rossana. República Guarani no Espelho. UFES. Disponível em: <http://www.academia.edu/3809363/Rep%C3%BAblica_Guarani_no_espelho>. Acesso em 11/11/2016.

CANÇADO, Airton Cardoso. Gestão Social. In: Buoullosa, Rosana de Freitas (org.). Dicionário para a formação em gestão social, Salvador: CIAGS/UFBA, 2014. P.80-84.

CANÇADO, A.C., TENÓRIO F.G.; PEREIRA, J.R. Gestão Social. Reflexões teóricas e conceituais. Cadernos EBAPE.BR,v.9,n.3,p.681-703, 2011.

CECHIN, ANTÔNIO. A República Guarani de Clovis Lugon. http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=3281&secao=332 acessado em 04/12/2016.


FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

FUNAI – Fundação Nacional do Índio. História e Cultura Guarani. Ministério da Justiça. Disponível em: <http://www.funai.gov.br/index.php/ascom/1947-historia-e-cultura-guarani>. Acesso em 27/11/2016.

LUGON, Clóvis. A República Guarani. Trad. Alcy Cheuyche, ed. 1. Ed. 248p. Expressão Popular, São Paulo, 2010.



FILME INDICADO: A MISSÃO 




SINOPSE

No final do século XVIII Mendoza (Robert De Niro), um mercador de escravos, fica com crise de consciência por ter matado Felipe (Aidan Quinn), seu irmão, num duelo, pois Felipe se envolveu com Carlotta (Cherie Lunghi). Ela havia se apaixonado por Felipe e Mendoza não aceitou isto, pois ela tinha um relacionamento com ele. Para tentar se penitenciar Mendoza se torna um padre e se une a Gabriel (Jeremy Irons), um jesuíta bem intencionado que luta para defender os índios, mas se depara com interesses econômicos.